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sexta-feira, 10 de janeiro de 2014

LITERATURA DO BAIXO TÂMEGA

10.1.14
Secada por esses gigantescos eucaliptos literários –Teixeira de Pascoaes e Agustina –, a literatura do Baixo Tâmega começa finalmente a mostrar ao mundo, graças ao empenho do professor Amarildo Mota e Sá e de sua voluptuosa esposa e secretária, D. Patrocínio Augusta Fidelis Manhouce de Mota e Sá, outras figuras que o tempo – inclemente nos seus julgamentos – e a inexistência de um lóbi regional trataram de remeter ao esquecimento. Com a devida autorização e beneplácito do venerável professor, é com muita honra que apresentamos alguns dos vultos das letras do Baixo Tâmega, que serão incluídos num esplêndido dicionário a publicar, de acordo com as últimas notícias, lá para 2036.
 
Leocádio Casimiro (1867-1925), pseudónimo de José de Almeida Quadros, Gondiães
 
A obra poética de Leocádio Casimiro (1887 – 1925) é, pela sua dimensão bárbara e ainda não totalmente conhecida, um dos mais significativos monumentos literários do Baixo Tâmega. Até ao momento, a equipa de investigadores destacada pelo professor Amarildo para a casa de família do poeta em Gondiães, já conseguiu encontrar mais de 15734 sonetos, 1525 quadras populares e é grande o receio que um barril recentemente descoberto na adega não contenha vinho mas esteja a abarrotar de poesia decadentista. Entre a produção de Leocádio que tem vindo a ser revelada, conta-se alguma da mais bela poesia erótica jamais saída de lusa pena, como “Lírios e Mel de Basto”, “Amanhã em Soalhães” ou “Bela Tranca”. Politicamente, Leocádio estava mais próximo das ideias do Partido Regenerador, embora também não desgostasse das propostas do Partido Progressista. Considerava-se um firme republicano com uma costela monárquica, ou um monárquico que simpatizava com a causa republicana. Esta postura singular valeu-lhe muitos inimigos e explica, em certa medida, o esquecimento a que a sua obra foi votada. Não se pense, contudo, que Leocádio não gozou do reconhecimento dos seus contemporâneos. Pelo contrário. Logo em 1935, quando se completaram dez anos da morte do poeta, a paróquia organizou uma coleta para que se erguesse uma estátua em sua homenagem. Angariada a verba, encomendou-se a um escultor de Rebordelo uma imponente obra em gesso que, no dia da inauguração, foi funestamente atingida por um raio, no que foi entendido por todos como um sinal divino de desaprovação por causa de uns poemas jacobinos e sanguinários que Leocádio escrevera na juventude e que, por falta de oportunidade, nunca renegara. Atualmente, a estátua, partida em duas e milagrosamente fumegante, é uma das grandes atrações turísticas da região e pode ser visitada nos terrenos há muito cedidos pela junta de freguesia de Gondiães para a construção do futuro Museu de Literatura do Baixo Tâmega.
 
 
Virgolina Pereira Tavares – (1894-1930) Fervença
 
Hoje em dia, Florbela Espanca é mito e Virgolina Pereira Tavares é sombra. Mas se justiça houvesse, a voz melíflua de Represas teria cantado os versos agridoces desta amante desgraçada, a grande poetisa do amor entre primos de primeiro grau. De facto, a vida foi madrasta para Virgolina. Aos quinze anos, apaixonou-se pelo seu primo, Edgar Tavares, um rapaz com uma envergadura física impressionante, apesar do seu modesto metro e sessenta. Entre os dois, o entendimento fluía tão natural como as águas da Ribeira de Fervença. Estava tudo muito bem encaminhado quando, inesperadamente, Edgar decidiu alistar-se no Corpo Expedicionário Português. O desgosto de Virgolina serviu-lhe de inspiração para as suas primeiras tentativas literárias – Gases para Orfeu, Carne e Canhão e Para Onde Vais que Não te Vejo. Enlouquecida pela perspetiva de perder o amado nas trincheiras europeias, Virgulina comprou um bigode postiço e também se alistou. Foi mesmo antes de embarcar no vapor que levaria os soldados para Brest que a rapariga foi desmascarada quando o bigode lhe caiu precisamente no momento em que proferia, com voz simuladamente grossa, estas palavras: “Então vamos lá dar cabo desses boches dum raio!” Apartou-se do primo com abundantes lágrimas e guinchos pavorosos que muito perturbaram os outros soldados, alguns dos quais estavam em crer de que iam a França participar numa peça de teatro intitulada La Guerre. Os anos passaram e a resignação apoderou-se do coração de Virgolina. Incrivelmente, quando já ninguém esperava, Edgar reapareceu em Fervença. Vinha com bom aspeto e, à primeira vista, nem se notava que tinha deixado o braço esquerdo nos lamaçais da Flandres. A prima celebrou efusivamente o regresso do herói que, no entanto, chegara decidido a desposar uma rapariga do lugar de Seixoso, cuja família tinha umas cabeças de gado e vários hectares de terra boa para cultivo. Virgolina nunca se recompôs da traição e entregou-se com todas as forças do seu ser à feitura de cestos de piorna. Na literatura, a única coisa que escreveu depois disso foi uma tragédia em cinco atos, intitulada O Maneta Ingrato, que alguns críticos perspicazes acreditam estar vagamente relacionada com o primo.
 
 
Miguel de Lemos (1907 – 1974) – Mondim de Basto
 
Se a literatura de viagens beneficia de um assinalável prestígio nestas terras, muito se deve ao trabalho incansável e pioneiro de Miguel de Lemos, conhecido como o Amundsen do Basto. Este filho dileto de Mondim cedo revelou a sua inclinação para a aventura. Aos oito anos roubou o burro aos tios e foi numa longa jornada até Celorico, onde foi recebido à pedrada por uma turba que andava de vigília para apanhar um lobisomem. Mais tarde, já adolescente, organizou, juntamente com amigos, uma expedição às freguesias de Campanhó, Paradança, Pardelhas e Bilhó, onde se espantou muito por aí encontrar parentela e um sujeito conhecido como Já-te-avio, com quem trocou minguadas palavras. O objetivo da saída era o de reunir elementos sobre os hábitos gastronómicos da população autóctone e o de recolher canções tradicionais que, já na altura, estavam em risco de se perder. Nas gravações que efetuou, podem ouvir-se as versões mais remotas de clássicos como “Espiga, Ai que Linda Espiga” e “A Minha Sogra é um Boi (barrosão)”. Os relatos das suas viagens eram publicados na imprensa regional e aguardados por uma multidão de leitores ávidos de saber mais sobre as gentes de sítios tão exóticos como Vilar de Cunhas ou Refojos de Basto. A capacidade de observação de Miguel de Lemos era servida por uma prosa despojada e humilde, quase franciscana, como se pode observar nesta passagem de um dos seus artigos mais populares, em que relatava uma épica deslocação a Vilar de Perdizes, de onde regressou com uma chouriça e uma tremenda carga de mau-olhado: “Encontrei urze. Encontrei giesta amarela. Também encontrei giesta branca, mas menos adrede. São as cores das terras do Barroso. No inverno...quero lá saber.” Dedicou os seus últimos anos de vida ao projeto megalómano de, em conjunto com a Casa do Povo, realizar uma excursão a Arraiolos. Infelizmente, a revolução de Abril e uns cogumelos venenosos impediram a concretização desse sonho de um grande visionário.
 
 
 
Adérito Magalhães (1894-1965) – Ermelo
 
Esplêndido ensaísta, prosador, polemista e defensor dos direitos dos índios norte-americanos, Adérito Magalhães conviveu com as mais importantes figuras literárias da sua época, como João Gaspar Simões – a quem tratava por Molas – Adolfo Casais Monteiro – o Bardas – e José Régio – que, certa vez, lhe emprestou cinco escudos e uma cigarreira de prata. Foi um dos colaboradores da revista Presença e, nas horas vagas, dedicava-se à reparação de televisores, uma atividade que, segundo o próprio, o mantinha “ancorado à realidade costumeira”, embora o facto de a televisão ainda não ter sido inventada contribuísse para a pouca clientela. Ficou célebre a sua discussão com António Borges de Castro, em 1943, a propósito do estatuto jurídico-administrativo-religioso da Nossa Senhora da Graça e que ficou conhecida como a Disputa de Ermelo. Durante várias semanas, os dois ilustres intelectuais esgrimiram argumentos perante uma plateia vibrante de professores de Coimbra e de porqueiros e almocreves de Manhuncelos, que por ali passavam. Para arbitrar a contenda foi convidado Bernardo Augusto de Madureira e Vasconcelos, lente catedrático de Teologia e impulsionador da filosofia tomista, que não pôde aceitar o convite por ter morrido em 1926. No final, Borges de Castro foi considerado o vencedor e Adérito Magalhães foi expulso de Ermelo, não sem que antes tenha sido obrigado a dar as ceroulas ao seu adversário. Após esse insucesso, Magalhães refugiou-se na Serra da Aboboreira a fim de concluir uma ambiciosa biografia em dezasseis volumes do cônsul romano Décio Júnio Bruto, projeto que abandonou quando percebeu que só sabia o nome do biografado.
 
 
 
 
Fernandes, neo-realista (1915 – 1963) – Baião
 
O neo-realismo, a exemplo da açorda e do partido comunista, nunca se deu bem por estas zonas. É verdade que Soeiro Pereira Gomes nasceu em Gestaçô, também no concelho de Baião, mas para enveredar pelo comércio intelectual com o demónio vermelho teve de rumar a sul. A falta de condições naturais para a prática do neo-realismo não impediu alguns entusiastas deste desporto radical de o praticarem, adaptando-o, contudo, ao seu contexto social específico. O exemplo mais flagrante será o de Fernandes, professor primário e auto-didata que, depois de aprender alemão sozinho, tentou traduzir O Capital, de Marx, tendo desistido por volta da primeira página por, de acordo com as suas palavras, “não perceber nada daquela m...”. A sua simpatia pelos comunistas era conhecida de toda a população, que não se incomodava muito com isso, “cada um é para o que nasce”, diziam, e a prova da tolerância do povo é que ainda só lhe tinham incendiado a casa duas vezes. Também lhe tinham dado um terrível enxerto de porrada mas nesse caso não tinha sido por razões políticas mas por motivos religiosos, visto que alguém disse que, ao passar em frente da Igreja de São Tomé de Covelas, Fernandes não se teria persignado. Insensível a estes apelos um tanto abrutalhados para que corrigisse o seu passo, Fernandes, agente provocador, publicou um livro cujos 50 exemplares logo foram queimados numa cerimónia presidida pelo pároco de Frende e que esteve para contar com a presença do Bispo de Braga. A ação do livro – Fogo na Planície – decorre na região do Tâmega. Sem se saber como, uma família de camponeses alentejanos aparece subitamente em Amarante. Ao ver aquela família desamparada, a percorrer as ruas à procura de pão, um jovem idealista e extraordinariamente parecido com o autor ajuda as crianças lendo-lhes excertos de A Mãe, de Gorki. Os petizes logo esquecem a fome e, com os rostos iluminados por um sorriso de esperança, tentaram tomar de assalto a Câmara Municipal e assassinar um GNR à dentada. O segundo e último livro de Fernandes – Ventos de Mudança – ainda se insere na linha neo-realista, embora o paralelismo estabelecido entre um poderoso capitalista minhoto e Jesus Cristo, São Francisco de Assis e Gandhi, levante algumas dúvidas quanto à pureza ideológica da obra.
 
Porfírio Queirós Carneiro (1927 – 2005) – Arco de Baúlhe
 
O romance gótico nunca teve muitos adeptos nem praticantes em Portugal. No Baixo Tâmega, a exceção tem o nome de Queirós Carneiro. Descendente de uma família de aristocratas, o seu tetravô era o Visconde de Busteliberne, famoso por liderar um regimento que enfrentou galhardamente os franceses vinte anos depois das invasões napoleónicas, o que deixou os soldados num estado de prostração ontológica por não saberem ao certo quem tinham andado a combater. Queirós Carneiro desenvolveu desde criança um carácter melancólico e lânguido que o avô tentou corrigir com banhos de água fria e apalpões às criadas. Mas pouco havia a fazer. Na escola, quando a professora lhe pediu para fazer uma composição sobre o dia mais feliz da sua vida, o rapaz escreveu sobre um passarinho moribundo que lhe veio pousar na mão no dia do funeral da sua mãe. A influência de um tutor alemão neurasténico, Conrad von Hagendaz, só veio agravar estas tendências mórbidas, embora tivesse inculcado no jovem o gosto pela literatura e o interesse por histórias macabras. Os seus primeiros romances – A Casa da Loucura e A Dor Negra das Campas – eram joviais, mas os seguintes – Vamos Brincar!, Bom dia, Alegria! – revelam já uma mente torturada perdida num labirinto de sofrimento. Na sua História da Literatura Portuguesa, Óscar Lopes e António José Saraiva, dedicam palavras de reconhecimento ao eremita de Arco de Baúlhe. Nos seus livros, cujo cenário é geralmente um solar decrépito onde há sempre a presença fantasmagórica de uma governanta de voz sepulcral (de acordo com um estudo realizado por uma aluna da Faculdade de Letras que tive o prazer de conhecer recentemente e com quem fui beber um copo enquanto conversámos inteligentemente sobre Barthes e depilação brasileira, as palavras que mais se encontram na obra de Freixieiro são sepulcral, fúnebre, cemitério e aipo), ninguém tem direito sequer a um vislumbre de felicidade, sendo que os mais sortudos sofrem terrivelmente antes de morrer e os mais infelizes sofrem terrivelmente até depois de mortos. De início, o público reagiu muito bem às obras de Freixieiro, mas depois, até mesmo os indefectíveis, como o Soares da barbearia, o acusaram de “explorar uma fórmula literariamente pobre”. Quase no fim da vida, Freixieiro tentou escrever coisas mais leves e luminosas, talvez para se redimir de uma vida consagrada à penumbra no Solar dos Morcegos. O melhor que conseguiu foi escrever “A Angústia”, um tratado sobre a morte, o sofrimento e o absurdo da existência humana e que, lá pelo meio, traz uma alegre e tropical receita de mousse de maracujá.
 
 
Futuristas de Caçarilhe (1911-1918)
 
Ainda é pouco conhecido e estudado o grupo de futuristas de Caçarilhe que, na segunda década do século XX, levou a cabo dezenas de ações de terrorismo artístico, entre as quais a tentativa de embalsamamento de um sacristão. Pensa-se que seriam cinco ou seis rapazes, todos eles filhos de famílias abastadas e de muita religião. Para enervar os pais, bocejavam ruidosamente na igreja, organizavam concursos de lançamento de hóstias e praguejavam em Latim. Inspirados pelos escritos de F. T. Marinetti e pela proximidade física de Amadeo de Souza-Cardozo, natural do concelho de Amarante, estes futuristas sem pontes, automóveis ou guindastes celebravam as árvores, os riachos e o menir da Serra da Aboboreira, criando dessa forma uma espécie de “retrofuturismo” ou “futurismo bucólico”. Um dos rapazes escreveu um poema intitulado “Fiat Lux”, que deveria ser uma apologia da luz elétrica, mas que não foi bem recebido pelos restantes. Numa noite de fim de outono, em 1915, a ideia da guerra como única higiene do mundo levou-os a pegar em forquilhas e sacholas e atacar a aldeia vizinha de Infesta. Houve grande tumulto, vivas à República! e perda de um alqueire de couve-lombarda. Na manhã seguinte foram obrigados pelas famílias a ir de porta em porta pedindo desculpa pelos acontecimentos da noite anterior. Com a morte do pintor de Manhufe, o grupo futurista de Caçarilhe desfez-se. Tanto quanto se sabe, dois dos membros que o compunham foram ordenados padres, tendo um deles chegado a visitar Roma para receber a bênção do papa Pio XI.
link do postPor Bruno Vieira Amaral, às 16:15  comentar

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