CON CHE SOAVITÁ
caminhas neste andamento levemente musical.
caminhas dentro da minha cabeça,
...
enquanto cai uma chuvinha melancólica
e eu estou numa pastelaria de campo de ourique,
e tomo estas notas, meio atordoado,
a ver-te caminhar dentro da minha cabeça
con che soavità.
é o fim de mais uma tarde triste da alma.
é isso, da alma e de mais nada. mas é um fim, um fim de tarde
enervado, junto a uma florista sem fregueses,
de unhas pintadas de vermelho vivo,
capaz de várias doçuras, vê-se
nos seus olhos e na boca
(labbra odorate e vi bacio e v’ascolto),
muito afadigada e boa que se farta,
a recolher as rosas não vendidas e as palmas e as avencas
e as gardénias e os gladíolos esfuziantes
e os raminhos emaranhados de qualquer coisa de que não sei o nome,
a dar nas pétalas uns últimos borrifos
e a preparar os taipais para fechar a loja.
é um fim de tarde, um fim de tarde
enervado e fosco à mesa de uma pastelaria, quando as lâmpadas
dão ao outono uma luz pelintra de mais baixo consumo
sob o tecto das nuvens, entre néons, faróis e buzinas estridentes,
brilhos de asfalto molhado e ziguezagues luminosos
e reflexos nos capots, reflexos de gente que passa rente aos carros,
reflexos de outros carros, reflexos de vitrinas iluminadas,
reflexos em ilusões cruzadas de movimento e contra-movimento,
em cascatas e vaivéns, em intermitências e semáforos,
e os baldes, os jarros, os vasos, os goivos e as gerveras,
golfadas de flores para a literatura europeia,
flores para los muertos,
y flores para nosotros,
os caixotes multi-usos da florista são recolhidos,
arrumados sob cortinas de plástico, e por fim um trinco
fecha-se sobre o tropel de tantas cores, atrás das costas da mulher
que aperta o impermeável, morta por se pôr a andar,
por se ir embora dali, corola minha dos desejos, enquanto
as gotinhas da chuva molham de leve a sua face morena
(con che soavità se lhe dava uma boa foda sem compromissos excessivos)
e um vizinho mais dengoso lhe diz “- até amanhã dona eurídice”
e ela dá aos quadris num meneio mais provocante.
eu, francamente, não sei por que razão
me deixo aqui ficar, enquanto toda a gente, incluindo a florista, recolhe a casa,
toda a gente, é claro, algumas criaturas no enlevo do seu amor,
outras na crispação impaciente do seu desamor,
outras sem nada que se pareça com essas formas de sentir,
mas todas muito suburbanas,
todas com problemas de pronúncia e de abertura das vogais,
e todas muito cheias de pressa e de indiferença.
não sei por que razão, ah!, caprichosas cadências da nossa humanidade!,
eu, que não tenho pressa nenhuma,
me ponho a relembrar a adolescência, esse distante, esse inquieto
tempo da timidez e da morriña em que escrevia “a chuva cai alada e triste
sobre os teus olhos líquidos e tristes” e recordo também subitamente,
mas isso foi muito mais tarde e uma coisa não tinha nada que ver com a outra
só que a memória tem destes curto-circuitos repentinos,
um grande amigo moribundo a contorcer-se de dores e de remorso
e a ver vultos que lhe assomavam à porta da agonia
a relembrarem-lhe as traições. e depois?
também um dia hei-de morrer e pode ser que tenha tempo para os remorsos,
mas por enquanto não, não estou para aí virado,
com esta chuvinha absurda a cair como um madrigal, a cair
con che soavità, e eu imagino a luz a bater em cheio
no ventre da florista, ora fulva e divina, a despenhar-se
como um punhado de ouro no regaço
de uma cortesã veneziana de cara oculta na sombra,
ora em chapadas claras, como a que inunda a susana do tintoretto,
a espraiar-se-lhe no corpo, a alastrar-lhe sobre a pele clara,
enquanto ela, eurídice, a florista, curvando-se sobre o espelho,
sopesa as mamas pequenas num leve afago das duas mãos em concha
ajustando-se à perfeição dos bicos espetados
e se põe a sorrir para mim nesses reflexos,
como um nenúfar a entreabrir-se plácido e quente
nessas águas virtuais do ser e do fazer,
a pedir-me que a escreva e a modele, que a modele e a module,
sem eu precisar de ter remorsos, mas oficina e memória
de um tempo do amor ocidental, de um
tempo que vem das cíntias e das lésbias, das beatrizes e das lauras,
das helenas e das bárbaras escravas,
mulheres que envelheceram à candeia mas ficaram
todas elas eternamente jovens sentadas à noitinha,
ao cair da noitinha macia nas palavras,
todas, até a deolinda do protopoema da serra de arga,
com seus tornozelos grossos e suas ancas parideiras,
até mesmo esta minha dinamene, esta minha eurídice florista,
morenaça a escapar-se entre morrinha e morriña
antes de eu a agarrar aqui como deve ser, pela garupa, antes de eu
aprender a ser um orfeu contrabandista da sombra mais amada.
e assim eis-me em campo de ourique, numa pastelaria mixuruca
onde entrei para tomar um café, pedi ainda uma água mineral sem gás,
sem ter sede nem outras razões especiais, sem mesmo ter de fazer horas
para ir à casa do pessoa ouvir mais não sei quem palrar decerto obliquamente,
mas, que se lixe!, não vou à casa do pessoa nem à casa de banho, fico-me
a beber água desconsolado e perco essa oportunidade única, única,
da melhor queca do ano, assim, sem mais nem para quê,
quando o cio da florista estava ali ao alcance da caneta e lá se vai a mulher,
perco-a indeciso, timorato e em-mim-mesmado no salão da pastelaria,
sem glória nem prazer, sem orgulho, nem caligrafia, nem guirlandas,
deixando-te caminhar à vontade na minha cabeça e não querendo
que te vás embora tão cedo, ó
noite escura da alma.
Sem comentários :
Enviar um comentário